11/09/21


09/06/21

et tibi magna satis




How blest is thy old age! thou hast the fields
That meet thy wants, albeit the pastures all
Are covered with bare stones, or marsh-grown reeds.

Virgílio

—⁠His flaws? Just one is enough: He prefers the better to the good.

André Gide

O narrador deplora a sua mediocridade e os que a suportam melhor do que ele. Tityrus é a personagem que ele encontra em Virgílio e em todo lado. Tityrus aceita; o narrador, outro Tityrus, rejeita. O narrador escreve um livro, e nós lemos um livro sobre a escrita dum livro. E a narrativa continua de Tityrus em Tityrus.

O livro é tão inverosímil, tão cheio de nada, que até parece a vida real.

I have a very active temperament; it’s the equipment that gets on my nerves . . .

07/06/21

um livro agradável que não recomendo a ninguém

Trio

Robert Pigent

It is just that in this case philosophy has to be more than usually parasitic because the concept whose validity we may wish to examine is on the face of it so bizarre, unplausible, unintelligible, that one can do nothing else but start from what somebody says it is.

A.C. Loyd

The homo religiosus, linked to the essential—if we admit his presence in every one of us—rebels against the lacerations produced by the succession of days, and seeks refuge in the time which knows neither succession nor laceration, that of the Word.

Robert Pinget

Uma criança que tenha visto muitos capacetes e poucos animais dirá, fazendo uso de muito boa lógica, que uma tartaruga é um capacete que anda. Li hoje que todos os cisnes de Inglaterra pertencem à Rainha, seguindo a lógica doutros tempos. Pigent abusa do jargão da lógica inata e da adquirida, mas nunca chega fazer sentido. Em Passacaglia, um whodunit fora do tempo, não existem causas nem consequências; aparecem e reaparecem motivos familiares, mas sua relação é sempre imprecisa. Lembrei-me do pensamento não-discursivo que sugere Plotino, porque nunca entendi bem esse conceito e porque me apetece um gelado de framboesa. Diria mesmo que este livro é extremamente gelado de framboesa.

«Não corte já as ervas daninhas. As abelhas agradecem.»

Sedmikrásky

Vera Chytilová

Die Artisten in der Zirkuskuppel: Ratlos

Alexander Kluge


Está tudo bem. Após muita ponderação, decidi cortar as ervas daninhas do terréu. Foram 10 meses muito difíceis. Abria a janela e estava muito frio para cortar, estava a chover muito, estava muito calor. Estava, de facto. Cortar ervas daninhas não é a maneira mais eficaz de resolver o problema, mas tenho os próximos 10 meses para pensar nisso.

Não tenho pensado muito, é verdade. Concentradíssimo num fluxo de pequenas distracções (uma cratera no México, o canto para chamar vacas sueco, danças do TikTok e vários refrões sugestivos), espalhei o meu tempo a fazer associações estrambóticas.






O condenado optimismo do Die Artisten in der Zirkuskuppel: Ratlos e o emancipador pessimismo de Sedmikrásky são formas de replicar, usando uma lógica própria, o que se vai passando no mundo. Quem não consegue vencer o jogo, muda as regras. O que importa é que o terréu está livre de ervas daninhas. Está tudo bem.


01/10/20

Waugh vs Powell

Anthony Powell: Dancing to the Music of Time

Hilary Spurling


Fathers and Sons

Alexander Waugh



He observed that the Howses that had the smallest beer had the most drunkards...

John Aubrey

Nos retratos que Henry Lamb fez de Anthony Powell e Evelyn Waugh, vemos um Powell gauche, esbatido entre os ocres do fundo, olhando obliquamente; Waugh, por sua vez, desafia quem o vê, numa pose deliberada que indica dandismo e deboche. Dizer que estão aí pintadas as suas personalidades não é completamente verdade, mas Lamb consegue captar muito bem a essência do carácter de ambos.

Waugh e Powell foram muitas vezes comparados, ou antes, usaram muitas vezes um para atacar o outro. No entanto, a comparação não é descabida: tinham quase a mesma idade, escreveram romances cómicos e foram ambos acusados de serem snobs, "most of us are at heart", como dizia Widmerpool, em A Dance to the Music of Time

Powell, que trabalhava na editora Duckworths, sugeriu o nome de Waugh para escrever uma biografia de Rossetti, o seu primeiro livro. Mais tarde, encontraram-se quando Powell tirava um curso de impressão e Waugh um de carpintaria; um presente pouco auspicioso e um passado cheio de problemas familiares criou uma ligação para a vida. Ambos tiveram uma infância tipicamente inglesa, infeliz, portanto. O pai de Powell era uma criatura volúvel e, por motivos profissionais, fez o pequeno Anthony mudar muitas vezes de casa, acrescentando uma instabilidade à outra. O pai de Waugh era um pai extremoso, mas gastou todo o seu carinho no irmão de Evelyn, Alec.

As semelhanças são muitas, mas o seu temperamento não podia ser mais diferente. Numa das muitas comparações, Hartley escreve: «Mr Waugh carries the heavier guns but Powell hits the target quite as often, and drills a neater hole». O estilo é a pessoa: Waugh destrói; Powell desconstrói. Gregário e generoso, Powell conhece toda a gente que é possível conhecer e Waugh, não se ficando, irrita toda a gente que é possível irritar. Powell observa impassivelmente; Waugh é o centro das atenções e só se retira quando já queimou tudo. De resto, admiraram-se mutuamente.

Ambas as biografias são divertidíssimas, mas Evelyn Waugh fica pior no retrato. Convém dizer que a biografia foi escrita pelo seu neto, Alexander Waugh, e há certas coisas que só um familiar pode escrever num livro, ou dizer, à frente da nossa nova namorada, numa festa de Natal.


28/09/20

Os Conselhos da Noite - José Oliveira

 Perchi' I' no spero di tornar giammai

Guido Cavalcanti


No poema Glosa a Guido Cavalcanti, Jorge de Sena descreve o seu exílio, somando distâncias imensuráveis: 


Porque não espero de jamais voltar

à terra em que nasci; porque não espero,

ainda que volte, de encontrá-la pronta

a conhecer-me como agora sei

 

que a conheço…


Peregrinatio ad loca infecta não seria um mau título para este filme. José Oliveira parece querer mostrar a Braga idolátrica, mas também a menos conhecida Braga profana. 

Roberto, uma personagem bukowskiana, volta a casa e observa a cidade com um conhecimento antigo (consciência da história da cidade e as suas memórias pessoais) que o afasta do moderno. O resultado é uma série de vinhetas com referências edificantes ao Mosteiro de Tibães e à Cairense, uma famosa casa de putas; algumas cenas com música ao vivo à Kaurismäki; diálogo castiço; algumas cenas contemplativas com motivos religiosos e rememorativos; e um enredo geral que é menor e menos interessante que as partes já referidas.

Gostei muito de ver Braga num filme, por razões inteiramente pessoais; e  parece-me que José Oliveira precisava de ver Braga num filme, por razões inteiramente pessoais. O filme acaba com as folhas, que Roberto usou para escrever sobre a sua peregrinação a Braga, a arder, prefigurando um futuro livre das ideias que o atormentavam. Quero ver o próximo filme.

26/09/20

Old Joy - Kelly Reichardt




This term [liminality], literally "being-on-a-threshold," means a state or process which is betwixt-and-between the normal, day-to-day cultural and social states and processes of getting and spending, preserving law and order, and registering structural status. Since liminal time is not controlled by the clock it is a time of enchantment when anything might, even should, happen.

Victor Turner

Kurt não causa uma boa primeira impressão; o aspecto socrático, a camisa mal abotoada, e o carrinho cheio de lixo são indicadores de que alguém nos vai pedir um cigarro. Mark parece uma pessoa normal, com um Volvo, uma cadela, uma família e as várias práticas terapêuticas que suportam a normalidade. Conseguimos imaginar aquele como o antes e este como o depois, num anúncio de um livro de auto-ajuda. 

O contraste entre as duas personagens é emulado na encenação: Mark a tentar meditar, o pássaro em cima de um fio de electricidade; as botas de Kurt, as New Balance de Mark; o comentário político na rádio de Mark, as conversas filosófico-janadas de Kurt. Tudo aponta para um contraste em que a condescendência vence. Não totalmente. 

A viagem à  floresta é para Mark terapia (shinrin-yoku, chamam-lhe), mas para Kurt é algo mais: quer recuperar algo ou encontrar algo novo que valha a pena.

Mark é um membro útil da sociedade, que vê em Kurt uma versão infantil de si mesmo, mas é desarmado pela sinceridade de Kurt. Kurt parece estar à espera de um epifania maior, enquanto vai coleccionando epifanias menores induzidas por drogas, mas é mais seguro justificar a sua inadequação pela sua decência fundamental do que pelas razões aparentes. 

Em Wendy and Lucy, Reichardt também explora uma personagem que não se ajusta aos padrões da comunidade. Wendy opta pela fuga. Kurt, no entanto, parece estar preso num espaço liminar em que a fuga não é possível.

03/09/20

Tootsie - Sydney Pollack




(...) all creatures that resemble Shaping must of necessity resemble one another...


David Lindsay

Em A Voyage to Arcturus, Maskull vai sofrendo uma série de transformações físicas que mudam a sua maneira de entender e agir. Somos todos diferentes e cada um age conforme um logos próprio, mas, ao exagerar as diferenças, Lindsay mostra também o que há de comum em todos, o Logos. Desconfio, sem recorrer a bibliografia secundária, que as intenções apologéticas de Lindsay são muito diferentes das intenções de Sidney Pollack, mas o móbil é o mesmo. 

Michael Dorsey é um actor falhado com problemas de atitude e, quando se transforma em Dorothy Michaels, Tootsie, para fugir ao falhanço, muda de atitude. No fundo, nem muda muito de atitude, mas a sua atitude tem implicações diferentes, porque ele é uma mulher. A mudança é sobretudo de perspectiva, vendo como as mulheres são tratadas na indústria. É curioso que esta mudança aconteça ao mesmo tempo que Dorsey/Tootsie se apaixona por Julie, uma actriz com quem trabalha, que mantém uma relação com um realizador proto-Chad. Uma pessoa mais céptica do que eu veria aqui apenas adaptação oportunista.

Este não é um filme para cépticos, no entanto. A sátira não despreza aqui, apenas demonstra as fragilidades comuns em casos diferentes.

27/07/20

Lerner de calças arregaçadas

Leaving the Atocha Station

Ben Lerner

Professione: reporter

Michelangelo Antonioni

Y será muy buena gimnasia para nuestra rígida manera de pensar imaginarnos de vez en cuando al mismo Paul Valéry como sacerdote de la inmadurez, una cura descalzo y con pantalón curto.

Witold Gombrowicz, Contra los poetas


We hate poetry that has a palpable design upon us—and if we do not agree, seems to put its hand in its breeches pocket.


Keats

Um professor de literatura avisou-me que a vida não é só poesia. Perdoei à vida essa falha, mas, para Lerner, a poesia também falha por não ser Poesia. 

You can only compose poems that, when read with perfect contempt, clear a place for the genuine Poem that never appears.

A poesia é sempre falhanço (uns falham melhor do que outros), porque nunca consegue chegar a realizar o potencial da ideia de Poesia; esta ideia de poesia está na cabeça de Lerner e serve para atacar as ideias que ele tem na cabeça dele sobre o que vai na cabeça dos outros. 

Platão, um homem que tinha muitas ideias sobre Ideias, atacou a poesia e esse ataque pariu no jovem Lerner uma ideia muito curiosa: a poesia é importante. Percebi imediatamente o problema dele. Noto que, quando menciono que pratico parkour, as pessoas reagem com exasperação, condescendência ou indiferença. Eu não pratico mesmo parkour, mas fico muito ofendido. Talvez ficasse menos ofendido se pensasse que o que eles desprezam não é a modalidade, mas o falhanço em produzir o que o Parkour promete. E promete tanto, meu Deus! As pessoas em geral ignoram a importância de práticas que lhe são estranhas e a poesia é, não quero ofender ninguém, como outra prática qualquer. Lerner, um poeta, sente-se frustrado com o que a poesia é, não é, como é vista pelos outros e porque não é vista por ninguém. Um amigo meu diz que, uma vez, perdeu um jogo de damas que jogou contra si mesmo, mas há que reconhecer que isto é xadrez  a derrota tem outra dignidade.  

Alberto Pimenta, em O Silêncio dos Poetas, diz que as pessoas desconfiam mais dum poeta do que de um ladrão de bancos, porque estes normalmente são punidos. A suspeição que Lerner partilha e, ao mesmo tempo, deplora tem que ver com a noção que a linguagem privada a que a poesia aspira é, num contexto público, irrelevante. A frustração com o medium está ligada a esta ideia que só permite atribuir uma importância relativa à poesia. Mas e a Poesia? Ashberry, numa entrevista, disse: «I am an important poet, read by younger writers, and on the other hand, nobody understands me», o que parece vir ao encontro desta ideia de que o poeta não comunica, antes cria uma linguagem não-corrente que não pode ser traduzida para a linguagem corrente. Por outro lado, Juarroz diz que um poeta diz a verdade, quando pensa que está a lavar os dentes. Ficamos na mesma. Não é por acaso que os diálogos platónicos acabam sempre com mais perguntas do que respostas. Podia acabar com estes problemas todos se desistisse da Poesia e aceitasse a poesia, i.e., a Poesia é mero nome, flatus vocis, ou flato vocal, que me parece a melhor má tradução; por outro lado, podia aceitar que a poesia é tudo o que é o caso.

O meu primeiro contacto com Ben Lerner passou-se assim; depois comecei a ouvir falar em autoficção, um termo dos anos 70 usado para descrever uma moda recente que, de resto, sempre existiu. Lendo alguns artigos sobre o assunto, fica-se com a sensação que muita gente acredita que se inventou a primeira pessoa do singular. Na verdade, todos praticamos autoficção, mas não vamos falar de parkour outra vez. Ben Lerner, uma pessoa que me irritava, passou a ser a pessoa que me irrita associada a um termo que me irrita. Vejam bem os preconceitos que tive de superar para pensar em ler este livro.

O livro, francamente, é uma desilusão, porque não só não confirma os meus preconceitos  como até mostra um lado de Ben Lerner com que eu me identifico muito. Custou-me ler várias passagens, porque é muito difícil perdoar pessoas com defeitos tão ligeiramente diferentes dos nossos. 

Adam Gordon, o narrador, partilha as ideias de Ben Lerner, mas a ficção cria um contexto que as torna toleráveis. Logo na primeira cena importante do livro, vemos Adam a não compreender a reacção de um homem ao quadro The Descent from the Cross, de Rogier van der Weyden. 

Was he, I wondered, just facing the wall to hide his face as he dealt with whatever grief he’d brought into the museum? Or was he having a profound experience of art?

Não é mero filistinismo, é uma maneira de demonstrar em acto as dificuldades de traduzir, nos nossos termos, o que os outros sentem. Esta estranheza, a dificuldade de entender os outros é o livro. A estranheza geral é acentuada pela estranheza particular: Adam está num país estrangeiro (Espanha), numa cidade carregada de significados culturais que ele ignora (Madrid), usando uma língua que não domina, para acabar um projecto que ele não sabe como começar. É bastante significativo que ele comece por traduzir mal Llorca. Llorca é mais um poema do que um poeta, o mito sendo tão importante como a obra; e traduzir mal era inevitável e é, ao mesmo tempo, um acto criativo.

(“Under the arc of the sky” became “Under the arc of the cielo,” which became “Under the arc of the cello”).

O romance vai explorando as dificuldades de Adam em se adaptar e os momentos mais esclarecedores são de pura incerteza:

But most intensely love for that other thing, the sound-absorbent screen, life’s white machine, shadows massing in the middle distance, although that’s not even close, the texture of et cetera itself.

A necessidade que o narrador sente de entender tem que ver com a necessidade de ser entendido. As afectações, que ele reconhece nele e tenta encontrar nos outros, adensam o drama que ele vai experimentalmente encenando, criando a autoficção dentro da autoficção. As suas mentiras, poses, as drogas fazem parte do mesmo processo educativo, da procura de algo substancial. As relações amorosas com Isabel e Teresa são a dialéctica à espera de síntese. 

Teresa, que encarna a sofisticação das elites, diz-lhe que ele parece Jack Nicholson em The Passenger, um filme que ele finge ter visto: «I hadn’t seen The Passenger, a movie in which I starred.»

As semelhanças começam logo nas sobrancelhas.





Jack Nicholson é David Locke, um repórter que se encontra a documentar uma rebelião num país africano. A situação parece totalmente diferente , mas é semelhante, porque a incompreensão dos costumes, das atitudes acentuam uma incompreensão geral. David revolta-se quando está atolado no meio do deserto, depois dum incidente com guerrilheiros. A situação é desesperada, mas parece que David consegue entender que já não entende nada. Nada parece fazer sentido e as dunas, que parecem pinturas de memórias de um sonho, acrescentam ao absurdo da situação.



Volta ao hotel e vê que Robertson, um homem que conheceu ali, está morto. Aparece como um homem que perdeu, como Lerner, um jogo de xadrez contra si mesmo.


Robertson era um homem de certezas, dizia ele, e Locke um homem de dúvidas. Locke adopta a identidade de Robertson, mas não ganha certezas; apenas ganha uma data de problemas diferentes, quando descobre que Robertson era um traficante de armas e acaba a correr a Europa a fugir da história, da sua identidade, com Maria Schneider a fazer de anjo da história.



Acaba por não encontrar a vida da identidade que escolheu, mas encontra a mesma morte.

O filme é a versão radical do livro. Adam parece no fim aceitar que não é um impostor, que é um poeta, que pode entender os outros pelo que entende de si, e o resto é literatura.

Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós

21/07/20

"Abre a porta, Wilma!", disse Alcibíades

The History of the Peloponnesian War

Thucydides, trad. Richard Crawley

The History of the Peloponnesian War

Thucydides, narrado por Mike Rodgers




Tout commence en mystique et finit en politique.

Charles Péguy

Desconfiava que a política é o que resta dos ideais depois da digestão. Agora, não tenho muitas dúvidas. Acho desinteressante, porque nunca tive Machtwille e a coprofilia passa-me ao lado. Garantem-me, no entanto, que esta atitude é tão política como qualquer outra, o que me deixa bastante triste. Não sabia que a minha vida privada tinha um significado, ainda por cima político, e só me resta cagar (politicamente, claro) nessa ideia.

Não participo, mas gosto de ver os debates políticos nas redes sociais como quem vê documentários da BBC; os documentários da BBC têm David Attenborough a explicar o que aquela fauna anda lá a fazer; nas redes sociais, ando à deriva. Ignorância minha, certamente. Decidi, então, ler uma data de livros — que toda a gente nas redes sociais já leu — sobre o tópico, para melhorar a minha compreensão do espectáculo. 

Decidi começar pelos antigos. Há muita gente que jura que se pode entender Trump a ler Chateaubriand. Eu acredito que conhecer superficialmente uma realidade antiga, usando instrumentos modernos, é a melhor maneira de usar instrumentos antigos para não perceber a realidade moderna. Assim como assim, sempre gostei dos Flinstones. Mas estou a ser pessimista. Bismarck dizia que só uma pessoa estúpida aprende com os seus próprios erros; uma pessoa inteligente aprende com os erros dos outros. É um bom argumento para ler história, mas ninguém consegue aprender tanto, e os historiadores são prova disso.

Indeed this was the greatest movement yet known in history, not only of the Hellenes, but of a large part of the barbarian world—I had almost said of mankind.

O leitor de poesia épica vai ter uma grande desilusão; The History of the Peloponnesian War é uma anti-épica. Não há feito grandioso que não seja prontamente admoestado com várias considerações que o tornam trivial e, muitas vezes, acidental. Não há favores divinos, mas há o aproveitamento da crença em favores divinos; há coragem, mas sempre misturada com ganância e imbecilidade em doses iguais; e a honra existe mais na retórica do que em acto. 

O livro é essencialmente político, logo as minudências preambulares são tão importantes como as batalhas. Não é, então, surpreendente que as assembleias sejam mais interessantes do que as batalhas. As conspirações, traições, os abusos de ideias gerais não diferem muito do que se vê agora, mas Tucídides arruma tudo com bom estilo, e nós não temos essa sorte.

Os rivais Atenas e Esparta estão muito bem divididos, demasiado bem divididos. Atenas é apresentada como amante da liberdade (nos discursos) e inovadora, e Esparta como amante da disciplina e tradicionalista. Parece demasiado conveniente, mas os primeiros passos da guerra reflectem essas tendências. Esparta, mesmo espicaçada pelos excelentes embaixadores coríntios, aparece morosa e Atenas parece ter resposta para tudo. Atenas só parece abrandar quando, em Siracusa, perde no seu elemento, o mar. 

De resto, as batalhas decidem-se pelos atrasos, acasos e pelo horário das refeições. Política, no fundo.

20/06/20

O Homem-Mulher - Sérgio Sant'Anna

A lot of men will do a lot to get laid. But that doesn't necessarily mean they play at love. It seems far more likely that love plays with them.

Clive James

António Lobo Antunes diz, num tom que denota mais gáudio que pesar, que os escritores portugueses fodem pouco. Ele deve saber do que está a falar. Eu digo, num tom que denota mais pesar que gáudio, que quero ser escritor e, ai de mim, nasci em Portugal. 

Não sei se os escritores portugueses fodem muito ou pouco, mas a verdade é que há poucas cenas de sexo memoráveis na literatura portuguesa. Carlos da Maia e Maria Eduarda em Os Maias protagonizam a cena mais interessante, mas a performance de Carlos é muito prejudicada pelo facto de saber que Maria Eduarda é sua irmã. O clímax dramático é o anticlímax sexual e o leitor consciencioso fica com um sabor a "agora que isto estava a ficar bom" na boca.

No Brasil, usando a aritmética de Lobo Antunes, os escritores devem foder muito. O português do Brasil também se presta mais à sensualidade, é verdade, mas a linguagem existe para descrever o mundo e, se o mundo dos escritores portugueses dispensa essa linguagem sexual, talvez o Lobo Antunes esteja certo. 

O Homem-Mulher dispensa a linguagem sexual em duas ou três páginas. As fodas, quando não acontecem, são imaginadas e sonhadas com o frenesim natural num macho da espécie. Patrice O'Neal pergunta, em Elephant in the Room, «Would you risk everything for a girl passed out behind a dumpster?», e a resposta é mais dificil do que parece. Isto talvez pareça um pouco vulgar, mas é uma visione amorosa cheia de ternura:
E ainda hoje, quando ouço os cânticos sagrados, é dela que me lembro, a minha garota, e, embora não lhe dê nem mesmo um nome, é a ela que amo.
Os homens, neste livro, apaixonam-se pela ideia de uma Mulher; a paixão e a ideia mantêm-se, só mudam as mulheres. Se isto não é ser romântico, não sei que vos diga.

27/05/20

Mephisto - István Szabó

JUDGE: How were you useful to the motherland?

BRODSKY: I wrote poems. That’s my work. I’m convinced … I believe that what I’ve written will be of use to people not only now, but also to future generations.

A VOICE FROM THE PUBLIC: Listen to that! What an imagination!

ANOTHER VOICE: He’s a poet. He has to think like that.

JUDGE: That is, you think that your so-called poems are of use to people?

BRODSKY: Why do you say my poems are “so-called” poems?

JUDGE: We refer to your poems as “so-called” because we have no other impression of them.

A relação da arte com a política sempre foi complicada. A complicação está toda no lado dos artistas, claro; a instrumentalização da arte é, para os políticos, muito simples e favorece os mais simples artistas. 

A primeira cena do filme prefigura o destino dos animais domésticos dos regimes e das ideologias: uma actriz interpreta Madame du Barry e canta alegremente em palco, mas já conseguimos ouvir, ao pé da guilhotina, «De grâce, monsieur le bourreau, encore un petit moment!». Hendrik Höfgen inveja os aplausos e está aí o seu destino.

Hendrik é um actor e só quer ser um actor (até a maneira como diz Schauspieler é diferente); de resto, é uma pessoa maleável. Não é totalmente sem carácter, mas faltam-lhe várias características. Ele é, sobretudo, os papéis que interpreta.

A ascensão do Partido Nacional-Socialista dá-lhe a oportunidade para testar a sua maleabilidade e torna-se um símbolo do regime, "o nosso Mephisto". Gostou muito de ser Mephisto; gostou menos de ser "o nosso". 

Os vários conflitos morais vão-se resolvendo em múltiplas cedências e reinterpretações expiatórias, sendo a mais significativa a reinterpretação da ambivalência de Hamlet como sinal de força. Não há ambivalência que tenha sempre o mesmo resultado.

No fim, revela-se o verdadeiro Mephisto, um que não é "o nosso".